15 setembro, 2015

Onde está deus?



A menina que fecha os olhos em lótus e medita sobre como é grande tudo isso. E sente o tamanho do universo

O pequeno fazendeiro que sabe que cada semente é uma vida que virá, que sabe o tempo da terra, que mexe o solo e faz nascer o que antes não havia.

A corredora que em longa distancia transforma corpo, mente e alma numa coisa só, dedicada a fazer a dor passar, e ir um pouco mais dessa vez.

A moça que cozinha com cada parte de seu ser. Que corta os temperos como quem está naquele lugar desde sempre, presente naquele instante, para transformar ingredientes em amor e dar prazer a quem come.

O moço que pula do penhasco, com quase nada nas costas, só pra sentir o corpo encher de adrenalina. E de novo. E de novo.

O fotógrafo que espera o pássaro. Senta. Aguarda horas. Sente a luz. Enxerga o tempo. Aponta. Foca. Tira uma, duas, três. Vira imagem.

Quando ela dedilha as cordas do violão. A tarde toda. A mesma harmonia. E vira ritmo.

O menininho que constrói cidades de areia. E permanece. E está inteiro.

O cientista que dedicou a vida a estudar uma célula. Uma única. Se dedicou ao invisível.

Quando você reza?


O Yogui que para o tempo com seu corpo.
O índio que transforma cipó em conhecimento.
O padre que saiu da catedral e virou líder comunitário.
Pisar na grama.
Os olhos do cavalo.
A voz de Milton.
O por do sol.

O que você louva?

As casas de Gaudí
As letras de Quintana
As músicas do Marley
Os filmes do Lars
O café de Minas
O tempero da Índia
O brigadeiro da sua avó

Onde está deus?

A dor do outro doendo em você. A preocupação com sua irmã. A saudades daquele amigo. O medo de ir. A gargalhada, aquela, de contorcer. O insight. O maravilhamento.
As estrelas, que são luzes do passado.
O tempo, que mostra que somos quase nada.
Os dinossauros, que eram tão grandes e viveram aqui tanto tempo.
Os desenhos nas cavernas, que contam do que fomos.

Sua igreja tem paredes?

Quando a gente chora no fim de um livro
Quando você se apaixona, e de repente um estranho se torna indispensável
Quando a árvore cortada volta a brotar
Quando alguém deixa o café pago para o outro
Quando o poeta escreve no muro, e alguém na rua se emociona
Quando o fazendeiro dá o leite que sobrou.

Quando trinta mil pessoas cantam junto a mesma música
Quando entramos na cachoeira.
Quando olhamos a foto de quem já morreu, e ele praticamente aparece do nosso lado.
Quando fazemos roda. No chão da sala, numa mesa de bar ou em volta de uma fogueira

Quando estamos presentes.

Qual a SUA religião?








30 julho, 2015

O PURO LIRISMO DO ABSURDO




Eu fui de carro. Não tem porque ir de carro quando você precisa ir ao lado de uma estação de metro em São Paulo. Não tem porquê. A não ser que os caras precisem fazer uma vistoria no seu carro. Aí, você tem que levar o carro.

Tudo começou porque perdi um simples papel. Porque, raios, ainda precisamos guardar esses papeis tão valiosos, que em caso de perda tudo acaba. Meu deus do ceu, estamos na era virtual, tá tudo na rede, na nuvem, já fomos pra Lua. Mas tem o papel... Perdi o papel.

Pra fazer outro papel precisei ir de carro e tudo pra Estação Armênia do metrô.
Parei no pátio, imenso, lotado de carros. Oi, preciso fazer uma vistoria no meu carro. Antes você tem que pegar um carimbo naquele prédio, depois você volta aqui. Fui parar o carro. Você não pode deixar o carro aqui. Mas eu preciso fazer a vistoria aqui. Você para o carro em um estacionamento particular, pega o carimbo, tira o carro do estacionamento particular, para o carro aqui, faz a vistoria, tira o carro daqui, volta com o carro para o estacionamento particular e volta pro prédio com o carimbo da vistoria para dar entrada no papel.

Era uma bela manhã de segunda feira. 10h45 Meu humor nível 100. Agradeci o moço simpático.

Estacionamento particular 15 reais a hora. Um roubo. Espero que eu resolva tudo em duas horas.
Entrei no imenso prédio. Setor Azul. Setor Verde. Setor Laranja. Setor Cinza. Setor Vermelho. Preciso fazer um papel.
Preencha esse documento, assine e fique naquela fila. É uma triagem, para saber se você trouxe todos os documentos. Mas eu trouxe, estão aqui. É aquela fila.

Na minha frente conversei com um rapaz que precisava trocar a cor do carro. Não sabia que precisávamos informar isso. Mas daí pensei melhor e achei prudente. Lembrei dos filmes de espionagem, dos carros roubados com placas trocadas e pintados de outras cores. Perseguições. Fugas pro México. Nível de humor 98. O moço escrevia no WhatsApp. E ria.
As filas em formato de caracol vão deixando a gente tonta, 40 minutos. Na triagem a simpática mulher falou que minha assinatura tinha que estar autenticada. Mas a moça lá da frente acabou de me dar esse papel e pediu para eu preencher aqui mesmo e assinar. Como raios eu teria autenticado.
A moça era muito legal. Ela ficou sinceramente preocupada comigo. Me indicou um cartório próximo... nível de humor 90.

Vinte minutos de caminhada pelas ruas do bairro depois cheguei ao 38 Cartório de Notas. Ventilador. Cadeiras. Senhas. Arquivos de gavetinhas cinza. Nelson Rodrigues. Senha. Minha senha. Assina aqui. E Aqui. E aqui. E aguarda a senha do caixa. Facilite o troco, estava escrito no cartaz, o cartório está com muita falta de moedas. Abri meu moedeiro. Queria facilitar o troco. Olhei a tabela de preços. Cópia 0,34 Certidão 2,11 cópia autenticada 6,26 retificação 17,72. Juro.
Quem faz esse preços? Malditos, facilitar o troco? vou dar uma nota de 50.
Minha senha pisca no caixa. Deu 13,85. Eu tinha 13,85 trocado. Dei. A moça me agradeceu muito e foi muito simpática. Nível de humor 73,9

Vinte minutos de caminhada pelas ruas do bairro. Prédio. Setor Azul. Balcão de informações. Você precisa passar pela Triagem. Mas eu já passei pela triagem, ela me triou, disse que eu precisava autenticar a assinatura, eu autentiquei. Eu estou triada.
É aquela fila.
40 minutos de fila da triagem, nível de humor 50.
A mesma moça. Deu certo? Deu. Que bom. Então você está com os documentos em ordem. Sua Senha: H0635

Sentei em um banco com dezenas de pessoas. Rezei para aquelas pessoas estarem ali só descansando, e não serem realmente pessoas na minha frente. Eram.
Foi aí que eu me dei conta que fazia 2h que eu tinha chegado e só agora eu realmente ia começar a fazer o que eu precisava ter ido fazer.

13h11

Senhas com letras e números. Nada do H

13h34

Converso muito com a moça do meu lado. Fiz minha primeira amiga da fila. Ela trazia um capacete de moto. Falei que a fila estava demorando. Falamos sobre profissão, maridos, e ela falou que ia desistir. Voltava outro dia. Desejei boa sorte. Ela me desejou força.

14h10

Outra moça sentou ao meu lado. Disse que o carro tinha sido guinchado. Ela estava em desespero puro. Nível de humor dela  - 45. Nível de humor meu 40. Ela disse que era a terceira vez que ela voltava ao prédio. Me contou da vida. E disse que venderia o carro pra nunca mais. Perguntei qual era a senha dela. H0646. Um frio percorreu minha espinha. 14h45. Falei que estava na fila há uma hora e quarenta minutos e minha senha era 16 antes dela. Na letra H. Ela empalideceu. H0635 piscou. Segurei forte sua mão. Desejei força. Eu fui. Ela derreteu. Deixei minha segunda amiga da fila.
O moço foi muito simpático. Falou para eu fazer a vistoria. E depois pagar a taxa. E depois ir para a fila de Retornos.

Tirei o carro do estacionamento particular e deixei com o cara uma pequena fortuna. Peguei o carro, fiz a volta. Parei no pátio, peguei uma fila dentro do carro. Saí do carro. Um cara muito simpático me cumprimentou e pegou o papel da minha mão. Abriu a porta do carro. Olhou por 3 segundos. Carimbou o papel. Me devolveu. Pronto.
Pronto?
Pronto.
Era isso?
Sim.
Obrigada.
Tirei o carro do pátio. Dei outra volta no quarteirão. Voltei ao mesmo estacionamento particular. Eu estava aqui há dez minutos. Tirei o carro pra fazer a vistoria... Moça, tem que cobrar do zero. Ok
Nível de humor 16, Nível do bolso 0.

Fui pagar a taxa. Setor Cinza, depois do Setor Laranja. Fila para pagar: um  caracol de 2Km. Não aceita cartão. Meu peito apertou. Os céus se encheram de nuvens carregadas. Mas tudo bem, tem um caixa eletrônico para sacar dinheiro.
Um caixa eletrônico. Um único
A fila contava mais uns trinta minutos. Nível de humor -12. Nível de desespero 146
Na minha frente um cara suava. Conversamos. Não acreditamos que só aceitava dinheiro. Quem anda com dinheiro hoje em dia. Meu terceiro amigo da fila.

De repente a fila para. O caixa está sem sistema. Somos alguns seres humanos brancos de pânico e vermelhos de ódio, no Setor Azul. Um japonês para atrás de mim (saravá Chico). Vê o caixa vazio, moça eu vou usar o caixa. Está sem sistema balbucio. Juro. Juro que vi uma lágrima escorrer de seus olhos.
Vinte minutos depois o sistema volta. Um saca. Eu rezo. Outro consegue sacar. Eu ajoelho. Outro consegue. Mentalizo. Outro. Medito. Outro. Deu certo. Minha vez. Cartão. Senha. O dinheiro sai.
O japonês sorri. Eu sorrio de volta. Ele mentaliza o melhor para mim. Eu lhe desejo boa sorte. O cara da frente me dá um tchau. Eu mentalizo coisas muito boas para ele. Despeço do quarto amigo da fila.
Volto ao Setor Cinza. 

A fila para pagar a taxa se transformou em um caracol de 5 km. Mais uma hora. Ou duas. Humor nível -54. O senhor na minha frente conta a história da mulher. Veio fazer reciclagem. Nessa idade, deles, se um passa mal... é bom que os dois possam dirigir. A moça atrás de mim concorda com ele. Ela está suando. Ofereço guardar o lugar para ela beber água. Ela agradece. O senhor me pergunta se pode sair da fila para encostar. Claro. A moça volta. Me conta do filho. Eu conto de mim. Ela me dá conselhos de tia. Eu agradeço. O senhor sorri. Concorda com o conselho. Eu agacho pra soltar a coluna. Próximo. Tem só três pessoas atendendo. Por que? Próximo. A fila parece andar para trás. As pessoas se contorcem. Próximo. Ninguém acredita. A moça enxuga a testa. O senhor se apoia. Próximo.
Sou eu.
Aqui está.
Obrigada.
Agora é só passar no retorno.

Retorno ao Setor Azul. Não, é no Verde.
Na fila do retorno enxergo o cara que estava atrás de mim na segunda fila da triagem. Ele sorri. Eu sorrio. Vinte minutos. Alongo a perna. Próximo.
Minha vez. A moça olha os papeis. Os carimbos. Eu suo. Ela me olha. Eu devolvo com rosto de súplica. Está tudo certo. Que bom, vocês podem me mandar o papel pelo correio. Não. Pelo Correio não mandamos. Mas você pode voltar aqui depois de amanha.
17h42. Uma lágrima escorre, agora dos meus olhos. Nível de humor – 100, Nível do bolso – 478.
Ela sorri. 
Agradeço. Sorrio de volta.

Afinal, a vida é a arte do encontro.



06 julho, 2015

O QUE EU SINTO


O que sinto por você não tem nome.
É coisa que dá no corpo.
Porque se der um nome, vai ser menos coisa. E menos corpo.

O que eu sinto por você não tem nome.
Pois paixão já foi. E amor será.
O que eu sinto por você é momento doce.

O que eu sinto por você não tem nome.
É silêncio quando te olho.
É canção quando te beijo.

O que eu sinto por você não tem nome.
É conforto.
É ansiedade.
É medo.
É intimidade.

O que eu sinto por você não tem nome.
Pois se for linguagem, é menos língua.
Se tiver letra, é menos lábio.

O que eu sinto por você não tem nome.
Porque se tiver nome.
É menos nosso.
É menos nós.

22 junho, 2015

NÓS

Ele toca. Eu leio
Ele desenha. Eu escrevo
A gente se beija.
Ele é melodia, eu sou letra.

Eu sou agitada. Ele é calmo
Eu tento meditar. Ele é centrado
A gente trepa
Eu gozo, ele também.

Ele fica. Eu saio
Eu durmo tarde. Ele acorda cedo
A gente viaja junto
Eu falo, ele me escuta.

Eu tenho insônia. Ele não bebe
Ele fuma. Eu danço
A gente ouve música
Ele canta, eu faço o coro.

Eu sou vegetariana. Ele ama bife a parmegiana
Eu sou mato. Ele é cidade
A gente mora junto
Eu árvore, ele também.

Eu sou água. Ele é terra
Ele é gasoso. Eu sou líquida
A gente é sólido
Ele perdoa, eu também.

Ele Física. Eu História
Eu grito. Ele sussurra
Nós brigamos
Eu quero ter razão, ele também.

Eu sou aguda. Ele é grave
Eu sou verde. Ele é azul
Nós nos olhamos
Ele me entende, eu o amo.

Não somos opostos.
Tampouco iguais.
Não nos completamos
Nem vamos.
Tínhamos duas camas, agora temos uma.
Tínhamos duas vidas, agora temos três.

O Eu, o ele e o nós.