13 dezembro, 2013

Engraxates



Penso nos engraxates de São Paulo.
Não nos engraxates de verdade, esses deixaram de existir no século vinte.
Penso nos meninos invisíveis que levam caixas de engraxar sapatos.
Por que as caixas?
Porque insistem em ser engraxates, os meninos?
Já repararam?
Eles vêm pedir uma moeda com a caixa de engraxar na mão.
Não oferecem. Sabem que sapatos modernos não levam mais graxa.
Talvez nem graxa tenham. Mas têm a caixa. A caixa conserva um resto de dignidade. Eles querem mostrar que não pedem. Que podem oferecer algo em troca, nem que seja engraxar sapatos.
Um símbolo da miséria em Chaplin
Os pobres engraxavam sapatos em filmes preto e branco.
Mas nossos meninos pretos, nossos meninos noir, não querem parecer pidões. Querem ter um ofício. Nem que seja um ofício que se perdeu nos idos de 1934.

Penso nos engraxates de São Paulo.
Eles que andam na Santa Cecília, na Barra Funda, no Centro, na Vila Madalena e em Higienópolis.
Esses que desafiam a higiene das madames.
Esses que cheiram cola e fedem mijo.
Esses que não têm nome. Que têm mão áspera.
Mas me surpreendo com a caixa de engraxate.
Abaixariam para passar graxa num couro italiano se forem solicitados? Saberiam o que fazer?
Onde arranjam essas caixas? Quem as dá para eles?
Será que existe um senhor, um velho engraxate em algum canto dessa cidade, que mune os meninos com esse artigo, para lhes dar algum pretexto. Algum pretexto de existir. Algum pretexto para incomodar.


Eu queria passar graxa nessa humanidade. Nos olhos dos homens que enxergam engraxada a realidade. Que torcem os conceitos. E humanizam sapatos para coisificar crianças.

05 dezembro, 2013

Josiane

Ela se chamava Josiane.
Nascera no interior. Interior do mundo. Onde ainda tem mato retorcido. Onde se pisa em formigueiro.
Josiane queria ser. E foi. Foi ao baile da cidade, vestida em crepe azul.
Josiane conheceu Manoel.
Josiane arranjou emprego aos 19. Cidade turística, vendia passeios.
Famílias e casais de férias queriam “retomar o contato com a natureza”.
Josiane, trabalhando para Cia de Aventuras Outdoor, oferecia paz e pássaros. E pedia 50 por cento de depósito pra segurar reserva.
Manoel construiu casa para eles. De tijolos. Com dois quartos.
Josiane nunca fez passeio de aventura. Mas junto com Manoel iam a praça tomar sorvete.
A cidade turistiquinha ganhou Caixa Econômica e Itaú. Ganhou também um O Boticário. Josiane se pôs bonita. Comprou maquiagem e hidratante de açaí.
O chefe de Josiane deu aumento. O turismo crescia rápido. Muita gente quer fazer rafting e trekking ultimamente.
 Josiane tem medo do rio. E tem medo de encontrar onça na trilha. “coisa estranha, pagar pra andar no mato.”
Josiane casou com Manoel aos 21. Foram juntos no enterro do sogro. No batizado da prima. E na festa do Divino.
Mas Josiane quer mesmo é ser atriz.
Barbara Ferraz, aquela da novela das sete, foi fazer passeio turístico e queria exclusividade. Josiane fechou um pacote exclusivo para ela.
Josiane pediu para o chefe para ir junto e conhecer Barbara Ferraz. Josiane quer mesmo é ser atriz.
Manoel achou ruim.
O chefe não quis dizer não.
Barbara Ferraz não deu bola pra Josiane. Só queria saber de fazer pose no bote.
Mas Josiane não se fez de rogada. Tirou foto com Barbara Ferraz. E tirou foto na trilha também.
Josiane vai contar essa história para a pequena Izabelle, que nasceu mês passado. E que, por Manoel, se chamaria Maria do Rosário, como a mãe dele.