Não nos engraxates de verdade, esses deixaram de existir no século
vinte.
Penso nos meninos invisíveis que levam caixas de engraxar sapatos.
Por que as caixas?
Porque insistem em ser engraxates, os meninos?
Já repararam?
Eles vêm pedir uma moeda com a caixa de engraxar na mão.
Não oferecem. Sabem que sapatos modernos não levam mais graxa.
Talvez nem graxa tenham. Mas têm a caixa. A caixa conserva um resto de
dignidade. Eles querem mostrar que não pedem. Que podem oferecer algo em troca,
nem que seja engraxar sapatos.
Um símbolo da miséria em Chaplin
Os pobres engraxavam sapatos em filmes preto e branco.
Mas nossos meninos pretos, nossos meninos noir, não querem parecer
pidões. Querem ter um ofício. Nem que seja um ofício que se perdeu nos idos de
1934.
Penso nos engraxates de São Paulo.
Eles que andam na Santa Cecília, na Barra Funda, no Centro, na Vila
Madalena e em Higienópolis.
Esses que desafiam a higiene das madames.
Esses que cheiram cola e fedem mijo.
Esses que não têm nome. Que têm mão áspera.
Mas me surpreendo com a caixa de engraxate.
Abaixariam para passar graxa num couro italiano se forem solicitados?
Saberiam o que fazer?
Onde arranjam essas caixas? Quem as dá para eles?
Será que existe um senhor, um velho engraxate em algum canto dessa
cidade, que mune os meninos com esse artigo, para lhes dar algum pretexto.
Algum pretexto de existir. Algum pretexto para incomodar.
Eu queria passar graxa nessa humanidade. Nos olhos dos homens que
enxergam engraxada a realidade. Que torcem os conceitos. E humanizam sapatos
para coisificar crianças.
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