Eu fui de carro.
Não tem porque ir de carro quando você precisa ir ao lado de uma estação de
metro em São Paulo. Não tem porquê. A não ser que os caras precisem fazer uma
vistoria no seu carro. Aí, você tem que levar o carro.
Tudo começou porque
perdi um simples papel. Porque, raios, ainda precisamos guardar esses papeis
tão valiosos, que em caso de perda tudo acaba. Meu deus do ceu, estamos na era
virtual, tá tudo na rede, na nuvem, já fomos pra Lua. Mas tem o papel... Perdi
o papel.
Pra fazer outro
papel precisei ir de carro e tudo pra Estação Armênia do metrô.
Parei no pátio,
imenso, lotado de carros. Oi, preciso fazer uma vistoria no meu carro. Antes
você tem que pegar um carimbo naquele prédio, depois você volta aqui. Fui parar
o carro. Você não pode deixar o carro aqui. Mas eu preciso fazer a vistoria
aqui. Você para o carro em um estacionamento particular, pega o carimbo, tira o
carro do estacionamento particular, para o carro aqui, faz a vistoria, tira o
carro daqui, volta com o carro para o estacionamento particular e volta pro
prédio com o carimbo da vistoria para dar entrada no papel.
Era uma bela manhã
de segunda feira. 10h45 Meu humor nível 100. Agradeci o moço simpático.
Estacionamento
particular 15 reais a hora. Um roubo. Espero que eu resolva tudo em duas horas.
Entrei no imenso
prédio. Setor Azul. Setor Verde. Setor Laranja. Setor Cinza. Setor Vermelho.
Preciso fazer um papel.
Preencha esse
documento, assine e fique naquela fila. É uma triagem, para saber se você
trouxe todos os documentos. Mas eu trouxe, estão aqui. É aquela fila.
Na minha frente
conversei com um rapaz que precisava trocar a cor do carro. Não sabia que
precisávamos informar isso. Mas daí pensei melhor e achei prudente. Lembrei dos
filmes de espionagem, dos carros roubados com placas trocadas e pintados de
outras cores. Perseguições. Fugas pro México. Nível de humor 98. O moço
escrevia no WhatsApp. E ria.
As filas em formato
de caracol vão deixando a gente tonta, 40 minutos. Na triagem a simpática
mulher falou que minha assinatura tinha que estar autenticada. Mas a moça lá da
frente acabou de me dar esse papel e pediu para eu preencher aqui mesmo e
assinar. Como raios eu teria autenticado.
A moça era muito
legal. Ela ficou sinceramente preocupada comigo. Me indicou um cartório próximo...
nível de humor 90.
Vinte minutos de
caminhada pelas ruas do bairro depois cheguei ao 38 Cartório de Notas.
Ventilador. Cadeiras. Senhas. Arquivos de gavetinhas cinza. Nelson Rodrigues.
Senha. Minha senha. Assina aqui. E Aqui. E aqui. E aguarda a senha do caixa.
Facilite o troco, estava escrito no cartaz, o cartório está com muita falta de
moedas. Abri meu moedeiro. Queria facilitar o troco. Olhei a tabela de preços.
Cópia 0,34 Certidão 2,11 cópia autenticada 6,26 retificação 17,72. Juro.
Quem faz esse
preços? Malditos, facilitar o troco? vou dar uma nota de 50.
Minha senha pisca
no caixa. Deu 13,85. Eu tinha 13,85 trocado. Dei. A moça me agradeceu muito e
foi muito simpática. Nível de humor 73,9
Vinte minutos de
caminhada pelas ruas do bairro. Prédio. Setor Azul. Balcão de informações. Você
precisa passar pela Triagem. Mas eu já passei pela triagem, ela me triou, disse
que eu precisava autenticar a assinatura, eu autentiquei. Eu estou triada.
É aquela fila.
40 minutos de fila
da triagem, nível de humor 50.
A mesma moça. Deu
certo? Deu. Que bom. Então você está com os documentos em ordem. Sua Senha: H0635
Sentei em um banco
com dezenas de pessoas. Rezei para aquelas pessoas estarem ali só descansando,
e não serem realmente pessoas na minha frente. Eram.
Foi aí que eu me
dei conta que fazia 2h que eu tinha chegado e só agora eu realmente ia começar
a fazer o que eu precisava ter ido fazer.
13h11
Senhas com letras e
números. Nada do H
13h34
Converso muito com a
moça do meu lado. Fiz minha primeira amiga da fila. Ela trazia um capacete de
moto. Falei que a fila estava demorando. Falamos sobre profissão, maridos, e
ela falou que ia desistir. Voltava outro dia. Desejei boa sorte. Ela me desejou
força.
14h10
Outra moça sentou
ao meu lado. Disse que o carro tinha sido guinchado. Ela estava em desespero
puro. Nível de humor dela - 45. Nível de
humor meu 40. Ela disse que era a terceira vez que ela voltava ao prédio. Me
contou da vida. E disse que venderia o carro pra nunca mais. Perguntei qual era
a senha dela. H0646. Um frio percorreu minha espinha. 14h45. Falei que estava
na fila há uma hora e quarenta minutos e minha senha era 16 antes dela. Na
letra H. Ela empalideceu. H0635 piscou. Segurei forte sua mão. Desejei força.
Eu fui. Ela derreteu. Deixei minha segunda amiga da fila.
O moço foi muito
simpático. Falou para eu fazer a vistoria. E depois pagar a taxa. E depois ir
para a fila de Retornos.
Tirei o carro do
estacionamento particular e deixei com o cara uma pequena fortuna. Peguei o
carro, fiz a volta. Parei no pátio, peguei uma fila dentro do carro. Saí do
carro. Um cara muito simpático me cumprimentou e pegou o papel da minha mão.
Abriu a porta do carro. Olhou por 3 segundos. Carimbou o papel. Me devolveu. Pronto.
Pronto?
Pronto.
Era isso?
Sim.
Obrigada.
Tirei o carro do
pátio. Dei outra volta no quarteirão. Voltei ao mesmo estacionamento particular.
Eu estava aqui há dez minutos. Tirei o carro pra fazer a vistoria... Moça, tem
que cobrar do zero. Ok
Nível de humor 16,
Nível do bolso 0.
Fui pagar a taxa.
Setor Cinza, depois do Setor Laranja. Fila para pagar: um caracol de 2Km. Não aceita cartão. Meu peito apertou.
Os céus se encheram de nuvens carregadas. Mas tudo bem, tem um caixa eletrônico
para sacar dinheiro.
Um caixa
eletrônico. Um único
A fila contava mais
uns trinta minutos. Nível de humor -12. Nível de desespero 146
Na minha frente um
cara suava. Conversamos. Não acreditamos que só aceitava dinheiro. Quem anda
com dinheiro hoje em dia. Meu terceiro amigo da fila.
De repente a fila
para. O caixa está sem sistema. Somos alguns seres humanos brancos de pânico e
vermelhos de ódio, no Setor Azul. Um japonês para atrás de mim (saravá Chico).
Vê o caixa vazio, moça eu vou usar o caixa. Está sem sistema balbucio. Juro.
Juro que vi uma lágrima escorrer de seus olhos.
Vinte minutos
depois o sistema volta. Um saca. Eu rezo. Outro consegue sacar. Eu ajoelho.
Outro consegue. Mentalizo. Outro. Medito. Outro. Deu certo. Minha vez. Cartão.
Senha. O dinheiro sai.
O japonês sorri. Eu
sorrio de volta. Ele mentaliza o melhor para mim. Eu lhe desejo boa sorte. O
cara da frente me dá um tchau. Eu mentalizo coisas muito boas para ele. Despeço
do quarto amigo da fila.
Volto ao Setor
Cinza.
A fila para pagar a taxa se transformou em um caracol de 5 km. Mais uma
hora. Ou duas. Humor nível -54. O senhor na minha frente conta a história da
mulher. Veio fazer reciclagem. Nessa idade, deles, se um passa mal... é bom que
os dois possam dirigir. A moça atrás de mim concorda com ele. Ela está suando.
Ofereço guardar o lugar para ela beber água. Ela agradece. O senhor me pergunta
se pode sair da fila para encostar. Claro. A moça volta. Me conta do filho. Eu
conto de mim. Ela me dá conselhos de tia. Eu agradeço. O senhor sorri. Concorda
com o conselho. Eu agacho pra soltar a coluna. Próximo. Tem só três pessoas
atendendo. Por que? Próximo. A fila parece andar para trás. As pessoas se
contorcem. Próximo. Ninguém acredita. A moça enxuga a testa. O senhor se apoia.
Próximo.
Sou eu.
Aqui está.
Obrigada.
Agora é só passar
no retorno.
Retorno ao Setor
Azul. Não, é no Verde.
Na fila do retorno
enxergo o cara que estava atrás de mim na segunda fila da triagem. Ele sorri.
Eu sorrio. Vinte minutos. Alongo a perna. Próximo.
Minha vez. A moça
olha os papeis. Os carimbos. Eu suo. Ela me olha. Eu devolvo com rosto de
súplica. Está tudo certo. Que bom, vocês podem me mandar o papel pelo correio.
Não. Pelo Correio não mandamos. Mas você pode voltar aqui depois de amanha.
17h42. Uma lágrima
escorre, agora dos meus olhos. Nível de humor – 100, Nível do bolso – 478.
Ela sorri.
Agradeço. Sorrio de volta.
Afinal, a vida é a
arte do encontro.