11 abril, 2014

Corpo

Ando incomodada com algumas opiniões das redes.
Acho que todo mundo tem direito de tê-las. E de dá-las, e de defende-las. Mas algumas delas andam me incomodando.
Nas últimas semanas o assunto estupro veio a tona. Que bom. A rede se transformou em um local de discussão de um tabu. O sexo. A violência. O corpo da mulher. O feminino. Bem durante a estreia de Ninfomaníaca II do diretor barra gênio Lars Von Trier. Coincidência? Talvez. Zeitgeist? Bem provável.

Ninfomaníaca I e II levanta a questão do sexo e do (não) desejo feminino como alegoria para diversas outras questões lindas. Como o conceber de uma obra de arte. A discussão entre instinto e lógica. O ser humano como algo (alguém) rachado.

Mas infelizmente essas questões não tocam muitas das pessoas que estão exercendo o direito de opinião na rede.
As pessoas que confundem corpo com coisa. Violência ao objeto com violência ao ser vivo. Direito a vida com direito a propriedade.

Pessoas que comparam estupro a roubo de relógio.
Pessoas que comparam quebrar uma vitrine com tomar um tiro, ou um cassetete na cabeça.
Pessoas que querem condenar à morte e à tortura, pois se sentiram invadidas em seus objetos e suas pequenas propriedades.

Corpo não é coisa. E que isso fique bem claro.

Corpo é carne.
Corpo é desejo.
Corpo tem fome.
Corpo dói.
Corpo aperta de angústia
Corpo sente medo.
Corpos verdadeiros são solidários a outros corpos. Sejam qual forem.
Corpo não tem um valor pré definido – por sua cor, por sua altura, por quanto ele já foi usado ou resguardado. O valor do corpo é não valor. O valor do corpo é O VALOR. O único possível, incomparável e impublicável. O valor igual. E sempre. E de todas as medidas.

Corpo vive
Corpo morre
Corpo, seja meu, seu, dela, dele, daquele outro...
Corpo tem direito a toda a vida e a todo cuidado. Seja humano, seja primata, seja canino, seja carnívoro, seja herbívoro, seja no mar, seja no ar. Um corpo vale mais do que qualquer quantia. Qualquer moeda. Qualquer discussão.

A vida vale mais sempre viva.
E anda me incomodando muito a discussão sobre a vida. Não sobre a existência. Essa é aberta a TODAS as interpretações. Mas sobre a vida – essa mesma. Que é feita de carbono e esperança / nitrogênio, hidrogênio, sangue.

Se discute se um animal vale mais vivo do que morto para a economia de um país.
Se discute se a Amazônia vale mais em pé ou no chão.
Se discute se a vida de um drogado vale menos do que a sociedade que alguns entendem como certa.
Se discute se a vida de um “louco” deve ser passada entre quatro paredes brancas. Só porque não se entende que não existe loucura pré definida.
Se discute se a vida de quem mora em certa região vale menos. Porque está em guerra, porque se quer petróleo, porque precisa expandir mercados.

Nada. Nada vale mais do que uma vida. Viva. Em liberdade. E com cuidados garantidos, por todos nós.






02 abril, 2014

Quando ganhei uma carona de guarda-chuva

Desci do prédio onde trabalho e as gotas já começavam a ameaçar. O dia já trazia aquela agonia, que para o tempo antes da tempestade.
Tempestade, para os paulistanos, é quase mau agouro.
Decidi arriscar. Precisava de um sanduíche para fingir ao meu estômago que tinha almoçado.
Determinada a apertar o passo, calculei, como uma física experimental, a distância até o toldo do restaurante. Medi a aceleração e a velocidade que precisava para chegar semi seca.
Não contabilizei o farol vermelho. Vermelho para pedestres.
Um farol que abre três vezes para carros em diversas direções, e apenas uma para os caminhantes. Parei.
Entre eu e o toldo, uma rua. E um homenzinho vermelho.
As gotas começaram a ficar mais grossas e com um espaço de tempo cada vez menor entre elas. A chuva estava apertando e gelando.
Quando escuto uma voz ao meu lado.
-       Se você quiser ficar aqui embaixo do guarda-chuva....

Era uma menina. Uns vinte anos? Mais um pouco talvez. Nunca tinha visto antes.
Me aprocheguei ao lado dela, me encolhi no pequeno guarda-chuva.
Ficamos as duas olhando para a frente. Para o chão listrado de branco. Os carros que passavam, como se fosse correnteza de rio.
Eu, com ansiedade peculiar, quebrei o silêncio. Falei da chuva.
-       Apertou mais rápido do que esperava.
-       É – ela disse.
-       Vou até aquele restaurante – apontei o toldo
Alguns segundos mais e o farol abriu para nós.
Minha tendência costumaz foi de apertar o passo. Mas ela caminhou bem mais lentamente. Como era a anfitriã do guarda-chuva, achei de bom tom acompanhar o passo dela.
No meio da faixa agradeci a carona. No terço final me despedi. Quando subimos na calçada, cortei para direita e me abriguei no toldo, dando um tchauzinho para a responsável pelas minhas costas estarem secas.

Paulistanos gostam de conversar sobre o tempo. Na verdade, todos os povos gostam de conversar sobre o tempo. Tem gente que reclama, diz que não é assunto. Ou pior, é falta de assunto. Discordo totalmente.
Falar do tempo talvez já tenha sido, em vários momentos, o assunto mais importante da humanidade.
Entender a meteorologia nos trouxe onde estamos. Nem mais nem menos.
Nossos costumes. Culturas. Gostos. Desejos. Produções artísticas e científicas, foram moldadas pela meteorologia (ou você acha coincidência lugares mais frios terem desenvolvido uma arquitetura mais “grandiosa” que povos das florestas tropicais? para ficar em apenas uma das centenas de exemplos)

Para os paulistanos, hoje, falar de chuva continua sendo importante.
Paulistanos não gostamos de chuva. A chuva faz trânsito. A chuva estraga as ruas. A chuva mata gente. A chuva estraga o fim de semana na praia.
A chuva é melancólica. Faz a gente pensar demais. A chuva traz lembranças. A chuva é cinza. E cinza é mais dolorido que azul.

A chuva lembra aos paulistanos várias coisas que os paulistanos gostariam de esquecer: que a gente afogou os rios. Que a gente impermeabilizou as ruas. Que a gente não tem árvore nem terra o suficiente. Que a gente ajuda a enlouquecer o clima do planeta. Que a gente, todo mundo, parece monstros no trânsito. Que pessoas são egoístas. E quando começa a chover a gente percebe que, em São Paulo, todo mundo só pensa em si. Nós somos uma das cidades mais desumanamente individualistas do mundo!

A não ser quando ganhamos uma carona de guarda-chuva. Aí a gente lembra que entre aquele monte de carros e luzes vermelhas e verdes e faixas e asfalto e poças fedorentas existem, algumas, pessoas.