"Dona Jane sai na varanda, aspira o ar perfumado e espia o azul do céu se degradando em tons de ocre e violeta. Faz um elogio à beleza da tarde. É tocada pela graça do momento. Viaja para um lugar bem distante dali, por uns segundos se retira para o interior macio de algum sonho. O careca, inoportuno como sempre, a resgata:
Me diga uma coisa, dona Jane.
Ela demora um pouco a pousar de volta na varanda. Porém a sutil mudança em sua expressão mostra que captou o ruído indesejável que se intrometeu entre ela e o sonho. A voz do careca rompeu a conexão com algo precioso, e isso a irrita.
Sobrou?
Sobrou o quê, seu Altino?
Ora, o quê. Sobrou a maniçoba pro jantar?
A oportunidade de retaliação surge, inesperada. Uma luz de prazer visita o rosto de dona Jane. Ela contém o riso a custo.
Não, não sobrou.
Nada?
Nada.
Ver a cara de decepção do careca é pouco para satisfazer dona Jane. Ela tripudia, impiedosa:
Em casa, minha mãe sempre falava: quem não se contenda comendo, nem lambendo. O senhor conhecia essa?
O careca não responde. Prefere refugiar-se na lembrança, é um grande especialista nisso. Ele põe as mãos micóticas sobre a barriga e em seu rosto surge uma expressão de regozijo. Chega a estalar a língua.
Ah, como estava bom.
Apoiada na grade, dona Jane levanta o pé esquerdo do chinelo e o descansa na canela direita, enquanto olha crepúsculo e tenta reconciliar-se com o devaneio interrompido.
Não consegue, o instante esfumou-se. Fechou-se o acesso a qualquer outra dimensão que não seja a tarde enjoativa de tão perfumada, a varanda precisando de pintura, o casario encardido do beco. O jeito é contentar-se com o real em movimento: a moto que sobe a rua e passa estrepitosa pela frente da pensão. Antes de voltar para dentro, ela diz ao careca:
Eu estava brincando, seu Altino. Guardei um pouco pro senhor.
O sorriso de felicidade dele tem mais de um palmo. E seu olhar outro tanto de gratidão legítima. As alegrias miúdas, que servem como pequenas recompensas por continuarmos vivos depois de depor as armas."
Esse é um trecho do livro do Marçal Aquino que eu to lendo agora.
O livro todo é bom. Muito bom;
Mas esse trechinho, que li ontem, me tocou especialmente.
Sou uma especialista em devaneios. Os amo, e os odeio. E os perco de vez em quando, e me perco neles o mesmo tanto. Me dói quando o real me puxa de dentro deles.. me irrita tbm... me conformo.
Tbm, vira e mexe, tendo à um refúgio na lembrança. Quem não?
Os devaneios são perigosos pra mim. Muito perigosos.
Mas me salvam tanto quanto me expõem ao perigo.
Assim como a leitura.
Ah! Livro chama-se “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”
...Teve um sábado à noite que eu bebi vinho demais... a pergunta é simples: este livro é meu?... lembro de o ter emprestado para alguém...será que ele está em tão boas mãos?
ResponderExcluirhahaha
ResponderExcluirO livro é seu sim!! hehehe... vinho... essa bebida distribui poesia, né? ( vc me emprestou uma)
Brigada!!!!!!!!!!!!!!!!!
beijos beijo beijos
Não encontro uma maneira menos agressiva e mais floreada para dizer o que vim dizer... então direi da forma mais pura possível: Esse título é FODA!
ResponderExcluirSabia que o Marçal começou a escrever o livro a partir do título?
ResponderExcluirEle não tinha história nenhuma, só um título, daí partiu o livro! bom né?