20 janeiro, 2009

Cartola, o documentário

Rio de Janeiro, 1908. Um mês separa a morte e o nascimento de dois homens. Enquanto o Brasil perdia Machado de Assis, nem notava que ganhava Cartola.

Dois gênios mulatos. Como outros mulatos marginalizados que sobrevivem nos becos dessa cidade. Mas a genialidade dos dois, as ruas do Rio não conseguiram sufocar.

Assim como Machado de Assis picotou em capítulos curtos um recorte da alma humana. Os diretores Lírio Ferreira e Hilton Lacerda teceram a partir de retalhos um recorte da alma de Cartola.

A sutil e real diferença entre fazer prosa e fazer poesia com imagens.

O documentário tem uma construção que amarra o espectador pelo peito, envolvendo-o em um labirinto diacrônico de tempo e espaço, mergulhando-o na realidade poética do samba carioca e na doçura de suas figuras.

O filme não faz com que você não entenda Cartola. Mas sinta Cartola.

Um Cartola que durante toda a vida transitou entre o sucesso e o fracasso. Saudado na Mangueira. Redescoberto como lavador de carros. Ora querido, ora esquecido.

Um boêmio que não hesitava em vender seus sambas por uns trocados.

De maneira despretensiosa e apaixonante, Cartola – Música para os olhos, por meio de raríssimas imagens de arquivo, vai conduzindo o espectador para o interior da Estação Primeira, por suas casas, por sua história e seus personagens. Transbordando o simples narrar de fatos de uma vida.

Em certo momento, o espectador está tão inebriado pelo clima criado pela poesia audiovisual dos diretores, que passa a perceber o significado da frase de Nelson Sargento:

“Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”

E deixa a cadeira do cinema levitando. Engasgado com a beleza da simplicidade.

Se a borboleta preta de Memórias Póstumas expõe todo o cinismo e imperfeição dos homens. As caladas rosas de Cartola falam mais de paixão e saudades do que muitas páginas escritas.

E são essas metáforas que o documentário de Ferreira e Lacerda conseguiu tão bem reproduzir. Com fusões e cortes que explicitam mais do que escondem, e falam por si.

1908. Um ano que une Cartola e Machado.
Ambos não tiveram filhos. Mas vieram ao mundo para apaziguar nossos peitos. E fazer-nos esquecer, um pouco, o legado de nossa miséria.
Por fim...

2 comentários:

  1. outra obra-prima de lírio ferreira.

    muito mais do que a vida de cartola, um retrato do real berço do samba.

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  2. karolyagra@yahoo.com.br13 de novembro de 2009 às 03:53

    Comprei o DVD pela internet; estou aguardando sua chegada. Você me fez arrepiar com a resenha...

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