“(...) Eu descobri-o logo, tu já o tinhas adivinhado antes, mas depois custou-te mais a aceitá-lo. O preço era cada um seguir para seu lado, seguir a sua vida, os seus hábitos, regressar ao seu mundo. (...)
Sabes, a minha vida tem sido um excesso permanente, uma espécie de avalanche a escorregar montanha a baixo. Não tem havido pecado que não me manche, vício que não me seduza.
(...) A minha vida tem sido um vazio sem bússola nem azimute. Tenho 21 anos agora, e às vezes sinto como se tivesse duzentos e dez. Não durmo de noite, adormeço de dia. Acordo de boca seca, sinto o mundo andar à roda, que alguém me puxa para o fundo de um poço onde só há escuridão, onde me vou perder e onde me quero perder, assim, sem sentido algum. Gostei tanto de te ter encontrado, não me deixes agora... Não me deixes à beira do poço. Não me tragas de volta do deserto.
(...)
- Sabes, apetecia-me estar lá, no deserto. Não consegui ainda habituar-me a isto.
- Tens de te habituar. A vida é assim mesmo, nada dura para sempre. Só os rios e as montanhas, como diziam os índios da América.
Já sei, já sei que nada dura para sempre – só as montanhas e os rios, meu sábio. Mas o que fomos nós um para o outro: apenas companheiros ocasionais de viagem? Com o tempo contado, com tudo previamente estabelecido e com prazo de validade previsto à partida? Foi só isso, diz-me, foi só isso o nosso encontro? Não ficou mais nada lá atrás, não deixamos nada de nós os dois no deserto que atravessamos?
Ás vezes eu pensava em ti, Claudia. Pensava, mas sem pensar muito. Cada um de nós seguira a sua vida e elas eram em tudo diferentes: os amigos, o trabalho, os lugares por onde andávamos, mais de meia geração a separar-nos. Lá longe isso não fez assim tanta diferença, mas aqui fazia toda. Eu não andava a noite nem nos bares, discotecas ou concertos de rock: nunca foi vida que me seduzisse e menos ainda agora, que trabalhava tanto e via crescer os filhos como pai de fim de semana. Com os anos, comecei a ficar obcecado em construir coisas. Coisas que durassem, que ficassem depois de mim. E, de cada vez que concluía uma coisa, passava a outra e assim sucessivamente, como se tentasse ultrapassar o próprio tempo.”
“Hoje já ninguém vai ao nosso deserto, Cláudia. Os fundamentalistas islâmicos tornaram-se sanguinários e incontroláveis e os próprios tuaregues revoltaram-se contra o poder de Argel.
Mas a razão principal nem é essa. A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo “nada”, eles riscam mentalmente dos seus projetos.”
No Teu Deserto, Miguel Souza Tavares
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